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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Muitos já não acreditam em programas políticos: querem colo, diz Mia Couto

O escritor moçambicano Mia Couto - Bob Wolfenson/Companhia das Letras/Divulgação
O escritor moçambicano Mia Couto Imagem: Bob Wolfenson/Companhia das Letras/Divulgação

Colunista do UOL

25/10/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Em entrevista ao UOL, um dos maiores escritores de língua portuguesa da atualidade diz que o que está em jogo no Brasil hoje é a ideia de humanidade
  • Para o escritor de Moçambique, nunca o Brasil esteve tão desacreditado como neste momento
  • Mia Couto diz que não basta partidos falarem de política. "O que está em causa em todos nós é uma descrença profunda".

O que está em jogo no Brasil no próximo fim de semana é a "defesa da própria ideia de humanidade". O alerta é de Mia Couto, escritor moçambicano e um dos autores contemporâneos mais importantes da língua portuguesa.

Em entrevista exclusiva ao UOL, ele constata a importância da eleição brasileira no mundo e aponta para os desafios impostos pela desinformação e educação. "O que está em jogo não é apenas o governo que os brasileiros vão escolher. Está em causa o modo como construímos o que é humano e que nos faz sentir como humanidade", disse.

Frequentemente cotado entre os favoritos para levar o prêmio Nobel de Literatura, o moçambicano diz que considera o Brasil como uma espécie de segunda pátria. Entre suas obras estão livros como O Último Voo do Flamingo e Terra Sonâmbula, escolhido como uma dos melhores obras africanas do século 20.

Sua identificação e amor pelo Brasil vêm acompanhados por um grito de desespero e indignação diante da situação atual. Segundo ele, os últimos quatros anos foram "verdadeiramente desastrosos para a imagem internacional do país". "Nunca o Brasil esteve tão desacreditado", disse. "Jair Bolsonaro é hoje citado em todo o mundo como o de mais grosseiro e caricato se pode esperar de um dirigente", disse.

Para ele, porém, partidos e movimentos políticos precisam reavaliar suas atuações. "As pessoas da esquerda e da direita estão sem chão. O mais razoável seria aceitarmos essa condição comum e encetarmos um diálogo, uma busca comum por novos rumos", propõe. "Os partidos convencionais falam de política. Isso é importante, mas não basta. O que está em causa em todos nós é uma descrença profunda, uma incapacidade de criar sentido para o mundo e para o tempo que vivemos", disse.

"Muitas pessoas deixaram de acreditar em programas políticos: querem colo, querem sentimento de pertença, querem salvação", afirma.

Mia Couto ainda alerta para os riscos da desinformação. "As redes sociais abriram autoestradas para quem queria substituir a argumentação política pela produção de mentira, para quem queria substituir o debate de ideias pela agressão a pessoas. O mundo vive uma situação em que todos se sentem perdidos, inseguros, incapazes de compreender e prever. Esse medo é transversal à direita e à esquerda. Esse medo favorece o surgimento de discursos messiânicos", destacou.

Eis os principais trechos da entrevista:

Chade - O que está verdadeiramente em jogo na eleição no Brasil?

Mia Couto - O que está em causa não é apenas o futuro da nação brasileira. É a integridade moral e humana aquilo da pessoa a quem se entrega a liderança de uma nação. É muito mais do que a defesa da democracia. É a defesa da própria ideia de humanidade.

Por muito se coloquem questões de natureza política a grande pergunta é esta: qual a natureza humana da pessoa a quem entregamos o destino da nossa casa comum, dos nossos filhos e netos? É preciso não esquecer o percurso de Jair Bolsonaro. Um homem que foi expulso do exército por congeminar um atentado bombista. Um homem que declarou que se tivesse poder "faria o golpe e mandava fechar o congresso". Que mandaria matar uns 30 mil, que elogiou a ditadura e votou, no impeachment da Dilma, em nome de um torturador do tempo da ditadura militar.

O que está em causa no Brasil não é apenas a escolha de dois candidatos. É a última possibilidade de evitar algo que o Brasil já viveu e muitos querem esquecer: um regime de medo e violência, um governo que agrida as instituições democráticas.

O que está em jogo é também a imagem que o povo brasileiro fornece de si mesmo a nível mundial. Bolsonaro é hoje citado em todo o mundo como o de mais grosseiro e caricato se pode esperar de um dirigente. Em termos de desprestígio, o presidente brasileiro está à frente daqueles que ele próprio tão energicamente condenava como Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Olhando a partir do exterior, por qual motivo um país com tantos problemas sociais e um passado de dor e sangue conseguia ter uma simpatia do mundo?

Uma parte mais feia do Brasil manteve-se oculta para quem o visitava. Manteve-se oculta para muitos dos brasileiros. Quando eu visitei o Brasil pela primeira vez, em 1987, vinha junto com outros compatriotas. Foi uma visita oficial, meio turística. Quase todos nós compramos a ilusão de que havia uma sociedade de inclusão. Na nossa delegação, as mulheres foram as únicas as que detectaram de imediato que restavam no Brasil, quase intactas, as sequelas coloniais que nós fomos superando com a nossa luta pela independência. Todos os restantes ficaram vencidos pelo sentimento da afabilidade e da cordialidade.

É preciso dizer que esse bom acolhimento era espontâneo, essa empatia era verdadeira. Mas os brasileiros não eram todos assim. E era previsível que assim fosse e que assim seja. É preciso entender que, no Brasil e em outros países, muitos dos que hoje se manifestam agressivos e a favor da agressividade reagem a uma situação de crises gerando crises e de invalidação de certezas e de esperança.

As pessoas da esquerda e da direita estão sem chão. O mais razoável seria aceitarmos essa condição comum e encetarmos um diálogo, uma busca comum por novos rumos. Os partidos convencionais falam de política. Isso é importante, mas não basta.

O que está em causa em todos nós é uma descrença profunda, uma incapacidade de criar sentido para o mundo e para o tempo que vivemos. Muitas pessoas deixaram de acreditar em programas políticos: querem colo, querem sentimento de pertença, querem salvação. Elegem quem lhe oferece essa miragem de uma fortaleza com fronteiras seguras. Entretanto, e como paga dessa salvação, deixam de fazer perguntas. Fazem como os soldados em tempo de guerra: abdicam da capacidade de pensar.

mia couto - 21.mai.2018 - Mariah Kay/UOL - 21.mai.2018 - Mariah Kay/UOL
O escritor moçambicano Mia Couto
Imagem: 21.mai.2018 - Mariah Kay/UOL

Quem é o Brasil para os africanos? E para os países de língua portuguesa?

O Brasil é um país que todos africanos olham como se fosse um parente histórico, reconhecem na nação brasileira uma história comum que foi dolorosa, mas que criou afinidades humanas e históricas evidentes. Muito trabalho foi feito na administração de Lula e de Dilma para aproximar África do Brasil. Bolsonaro virou costas a essa preocupação. Em todo o seu mandato Bolsonaro nunca visitou África na sua condição de estadista.

O momento de maior empenho de Bolsonaro junto dos países africanos foi uma carta que ele escreveu ao presidente de Angola. Essa rara iniciativa não foi tomada em defesa dos interesses do povo brasileiro. Foi tomada em defesa da Igreja Universal do Reino de Deus quando crimes financeiros desta instituição começaram a ser expostos num tribunal de Luanda. E até essa solitária e desesperada missiva foi uma derrota diplomática do governo brasileiro. A mensagem e os mensageiros foram ignorados pelas autoridades angolanas.

A imprensa divulgou um momento bem revelador de como África existe na cabeça de Bolsonaro. Numa conversa com os seus apoiadores, Jair Bolsonaro anuncia que acabou de convidar um presidente africano para visitar o Brasil mas que não se lembra nem do nome da pessoa nem do país. Lembra-se apenas que esse ilustre esquecido era conhecido como "Bolsonaro da África" e que "por acaso era general do Exército."

Ao virar costas a África, Bolsonaro também virou costas ao Brasil que existe em África. São conhecidos os seus comentários após uma visita que fez a uma comunidade quilombola. Para o atual presidente brasileiro, os africanos e os brasileiros de matriz africana são como ele disse no final dessa visita: gente que não serve nem para procriar.

Diante da pandemia, da destruição da Amazônia, das ameaças contra a democracia, como o mundo enxerga o país hoje?

Os últimos quatros anos de governação foram verdadeiramente desastrosos para a imagem internacional do país. Nunca o Brasil esteve tão desacreditado. É preciso que todos os brasileiros (sobretudo os que ainda apostam no bolsonarismo) saibam desta perda de prestígio internacional. Não se trata, insisto, apenas da orientação política escolhida pelo atual Presidente. Trata-se da sua dimensão enquanto pessoa.

É difícil imaginar uma criatura que declara publicamente que só não comeu carne humana apenas porque a comitiva dele não o acompanhou. Uma declaração destas levaria à demissão do presidente em qualquer outro país do mundo. Um presidente que tivesse destratado mulheres e minimizando as mortes pela pandemia teria de enfrentar a justiça em qualquer país. Não é apenas a figura do presidente que fica em causa. O preço de não se ter exigido responsabilidade legal por todas estas afrontas é um motivo de descrédito para a imagem do Brasil.

Por qual motivo essas eleições no Brasil são importantes fora das fronteiras do país?

Imagino que para muitos brasileiros seja estranho que o mundo esteja vivendo tão intensamente estas eleições. A reação mais imediata é encarar esse interesse como uma ingerência em assuntos que apenas dizem respeito aos brasileiros. Também não gosto que gente que não é moçambicana se torne demasiado opinativa quanto a assuntos da soberania de Moçambique.

A pergunta é: por que razão estas eleições estão a mobilizar tanto o mundo inteiro? O que está em jogo não é apenas o governo que os brasileiros vão escolher. Está em causa o modo como construímos o que é humano e que nos faz sentir como humanidade.

O Brasil espalhou em todo o mundo a imagem de um país hospitaleiro, fraterno, gentil, com gente que superava a tristeza com a canção e o abraço. Era certamente uma imagem romantizada. De alguma maneira, o mundo ficou fascinado pela cultura e a arte que os brasileiros teceram a partir da sua diversidade. Independentemente da sua escolha política, os brasileiros devem orgulhar-se do afeto e admiração que a nação brasileira conquistou no mundo. Ao se preocuparem com o resultado das eleições brasileiras os países devolvem hoje ao Brasil a empatia que o Brasil espalhou pelo mundo.

Vivemos um processo eleitoral marcado profundamente pela desinformação. Uma democracia sobrevive à essa estratégia? Como educar contra a desinformação?

Acontece em todo o mundo: as redes sociais abriram autoestradas para quem queria substituir a argumentação política pela produção de mentira, para quem queria substituir o debate de ideias pela agressão a pessoas. O mundo vive uma situação em que todos se sentem perdidos, inseguros, incapazes de compreender e prever. Esse medo é transversal à direita e à esquerda. Esse medo favorece o surgimento de discursos messiânicos.

O modo como Bolsonaro é designado pelos seguidores é bem sintomático: ele não é um dirigente político. É um "mito". Mas um "mito" que se pretende salvador não anda de jet ski quando uma tragédia humana se abate sobre várias cidades da Bahia.

Qualquer outro dirigente tinha interrompido as férias para dar apoio aos que sofriam. Bolsonaro não falhou apenas nos deveres presidenciais. Falhou nas suas convicções religiosas, falhou como ser humano. O que faria qualquer presidente (para não dizer qualquer cidadão) que desse de caras com um prostíbulo em que estivessem sendo exploradas meninas de menor idade? Tomaria de imediato medidas para defender essas menores. O que fez Bolsonaro? Seguiu as meninas porque tinha "pintado um clima".

Como chegamos a esta ausência de valores que hoje se tornou uma ameaça global? Muitos acham que o que falhou foi a educação. E consideram que aposta em mais educação é a solução. É verdade. Mas não basta haver mais educação. A Alemanha que elegeu Hitler era, na época, uma nação com elevados padrões de educação. Nós precisamos de outra educação, de programas escolares que ensinem a criar e desenvolver espírito crítico, a criar solidariedade e a capacidade de questionar a torrente de fake news.

Tão grave como a poluição atmosférica é a poluição mental que substitui ideias por crenças. Mais grave que as diferenças ideológicas é a promiscuidade entre falsas igrejas que, na verdade, são empresas que trocam o dízimo por uma duvidosa salvação. Foi a mando de uma dessas empresas que Bolsonaro se apressou a escrever uma carta ao Presidente angolano. Não era a fé que estava em causa. Era um negócio. Um negócio à escala internacional.